Seria mesmo ele?
por Licínia Quitério
Há meia dúzia de anos, num transporte público, sentei-me ao acaso ao lado de um desconhecido. Puxei pela sandes de queijo e comecei a comer com avidez, porque tinha estado em jejum de obrigação. Já a sandes se aproximava do fim, quando o sujeito se inclina para mim, me toca ao de leve com o ombro e exclama, isso é que é larica, e ri-se. Afastei-me, olhei-lhe o perfil e com cara de poucos amigos disse, pois. O sujeito continuou a rir, a dizer, não me conheces, e eu, não o conheço de lado nenhum, o senhor deve estar enganado, e ele ria-se, ria-se, não estou nada enganado. Já eu pegava na mala e me preparava para mudar de lugar, incomodada com aquela parvoíce de velho, quando ele, agora mais sério, diz, não te vás embora, já não conheces um gajo chamado JT?
Não, não o reconheci, somos velhos amigos, fomos companheiros de colégio e de outras guerras, mas passamos muito tempo sem nos vermos. Ele disse, eu estava disposto a continuar a intrigar-te, mas tu ficaste mesmo brava, e eu deixei a brincadeira.
Continuámos a viagem a conversar, ele mais animado do que eu, despedimo-nos, até à próxima. Toda a vida me aconteceram cenas destas. Não tenho memória para fisionomias e agora que os meus amigos ficaram velhos e deles guardei apenas os seus rostos de outrora, acontece-me brincarem comigo, ou zangarem-se, pensando que não lhes ligo.
Aqui para nós, ele seria mesmo o JT, o rapaz garboso dos vinte anos, ou aquele velho sem graça a fazer-se engraçado, a tomar-me por parva?
Eu estava brava, disse ele. Tal como aos vinte anos. Há coisas que o tempo ainda não conseguiu mudar em mim. Só o meu rosto mudou, tal como aconteceu ao do velho meu amigo. Este encontro casual deu-me assim uma espécie de espelho a quem perguntei, como a da história, com adaptações, claro:
– Diz-me, espelho meu, quem é a mais jovem da floresta?
Não me desiludiu a resposta. Os espelhos mentem muito, é o que se sabe.
Licínia Quitério
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